“Quanto mais escura a noite, mais forte o brilho da estrela”: uma breve interpretação do impacto do BTS nos dias atuais

Brunna Martins
11 min readMar 10, 2021

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‘As luzes que vemos um no outro’ — Ilustração por @danicobr

Em setembro de 2018, o BTS participou da 73ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Para além do peso histórico de ser “o primeiro grupo de K-pop a realizar este feito” — e como essa frase vem se tornando orgulhosamente corriqueira — , o discurso declamado por Kim Namjoon marcou uma geração.

“Meu coração parou quando eu tinha nove ou dez anos” é um profundo verso de Intro: O!RUL8,2?, e ao citá-lo no discurso, Namjoon explicou que, nessa época, começou a preocupar-se com o que as outras pessoas pensavam de si, enxergando-se não mais pelos próprios olhos, mas pelos alheios.

“Meu pai disse para aproveitar a vida
Eu quero perguntar ao meu pai se ele aproveitou a vida dele”
— Intro: O!RUL8,2?

Moldando-se ao padrão da sociedade, RM parou de olhar para o céu, para as estrelas e, também, parou de sonhar acordado. Logo, começou a calar a própria voz. Na coletânea de ensaios autoetnográficos publicados no livro I Am ARMY, Eaglehawk (2020) esclarece que “para o BTS, ‘falar por si mesmo’ faz parte do processo de ‘amar a si mesmo’ — que eles estavam compartilhando com o mundo”.

BTS discursando na ONU, 2018
Fonte: The Washington Post

“Ninguém chamava o meu nome, nem eu mesmo. Meu coração parou e meus olhos se fecharam. (…) Mas eu tinha um santuário e era a música. Havia uma voz dentro de mim que dizia ‘acorda, cara, escute a si mesmo’. Mas levou um longo tempo para que eu ouvisse a música chamando meu verdadeiro nome”.
— Kim Namjoon em discurso na ONU, 2018
(tradução: Bangtan Brasil Legendas)

Portanto, temos aqui um ponto de ruptura: como sete jovens completamente diferentes, mas apaixonados pela música, poderiam sobreviver fiéis a sua essência — falando por si mesmos e amando a si mesmos — em meio a uma indústria e a uma sociedade, onde aqueles que não agradam são descartados?

“Eles apontam o dedo pra mim
Mas eu não dou a mínima
Não importa qual seja
a sua razão para me culpar
Eu sei o que sou
Eu sei o que quero
Eu nunca vou mudar
Eu nunca vou negociar (…)
Você não pode me impedir de me amar”
IDOL

Dois anos depois, em meio a uma pandemia que, infelizmente, já nos levou milhões de pessoas e nos afastou de outras tantas, o BTS voltou a ONU para uma nova mensagem.

Min Yoongi iniciou seu discurso dizendo: “Talvez, pela primeira vez, a vida tornou-se simples. Não era o que queríamos, mas foi um tempo precioso e bem-vindo”. Confesso que os relatos de Yoongi sobre o período que estamos vivendo foram os que mais chamaram a minha atenção, por dois motivos: primeiro, porque dizer que a pandemia trouxe um “tempo precioso” não me parecia certo; segundo, porque eu me identificava profundamente com suas palavras e culpava-me por isso. Como toda mente brilhante carrega beleza em sua complexidade, levei algumas noites para entender com clareza o que SUGA queria nos transmitir e peço sua permissão para explicar isso através de um relato pessoal.

Até o início de março de 2020, eu ainda não havia completado minhas duas décadas de vida e estava cursando o sexto período na universidade. Como moro no interior, acordava todos os dias às 4:30h da manhã, pegava um ônibus às 5:30h e chegava ao meu destino às 7h, onde tinha aulas até às 13h. Almoçava no restaurante universitário, na maioria das vezes sozinha — pois especificamente neste período, havia afastado-me de meus amigos mais próximos — , e chegava no trabalho às 14h. Lá, eu cumpria o expediente até às 18h e esperava até às 19h para ir para casa. Eu descia do ônibus às 20h; até conseguir tomar banho e jantar, já passavam das 21h e eu precisava dormir para trilhar exatamente o mesmo caminho no dia seguinte. Até o início de março de 2020, eu sentia que não conversava mais com meus pais, que estava perdendo o crescimento do meu irmão mais novo e que essa rotina rasgava-me de dentro para fora, deformando-me de maneira lenta, desesperadora e inevitável. Aos finais de semana, além de tentar — sem sucesso — absorver as matérias do curso, dormia de 10 a 12 horas, tentando recuperar a energia que a vida me sugava. As noites de domingo eram as piores, pois saber que dali a algumas horas tudo começaria de novo, fazia-me chorar compulsivamente, bem como temer pelo dia que eu não suportasse mais.

Min Yoongi discursando na ONU, 2020
Fonte: Big Hit Entertainment

“Estou acostumado a um mundo inteiro se encolhendo em um instante. Quando estou em turnê, eu fico em pé em luzes intensas e altos gritos dos fãs. Mas a noite, em meu quarto, o mundo se torna apenas alguns passos de largura”.
— Min Yoongi em discurso na ONU, 2020
(tradução: BTS Subs)

A pandemia não é, nem nas mais distorcidas perspectivas, algo bom; o isolamento social, muito menos. Em um recente estudo feito pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Lima (2020) afirma que o confinamento imposto pela Covid-19 “vem colocando à prova a capacidade humana de extrair sentido do sofrimento e desafiando indivíduos e sociedade, no Brasil e em todo o planeta, a promoverem formas de coesão que amorteçam o impacto de experiências-limite na vida mental”.

“Bem, a situação não é boa na Coréia e no exterior, certo? Então, quando criamos essa música pela primeira vez, queríamos fazer o que somos bons, o que fomos capazes de fazer, para dar força aos nossos fãs. Essa foi a maior motivação”.
— Min Yoongi sobre ‘Dynamite’, em entrevista para KBS
(tradução: BTS News Brasil)

A partir disso, entendo o termo “tempo precioso e bem-vindo” utilizado por Yoongi no discurso na ONU, não como advindo da pandemia, mas da inevitável pausa que foi imposta ao mundo. No livro A sociedade de consumo, Baudrillard (1995) inicia afirmando que as pessoas já não encontram-se rodeadas por outras pessoas, mas por objetos. Em um estudo sobre a obra A vida para o consumo, de Bauman, Caminha (2009) aponta que “atualmente, é o desejo humano de estabilidade o seu principal fator de risco”.

Min Yoongi, assim como todos os membros do BTS, antes de fazer parte do grupo número 1 na HOT 100 da Billboard, é um rapaz na casa dos 20 anos, assim como eu — e, possivelmente, como você — , que trabalha demais. Em I Am ARMY (2020), Eaglehawk explica este fenômeno da seguinte forma:

“Veja, uma das qualidades inerentemente únicas do BTS é sua capacidade de contar histórias sobre si mesmos que ligam seu contexto ‘pessoal’ a um contexto ‘político’ universal mais amplo. É isso que faz com que a experiência vivida por sete homens coreanos soe verdadeira na vida de pessoas de origens muito diferentes ao redor do mundo”
(EAGLEHAWK e LAZORE, 2020).

“O mesmo dia, a mesma lua
24 horas por dia, 7 dias por semana, tudo se repete
Minha vida está no meio disso
Desempregado, vinte e poucos anos, com medo do amanhã”
— Tomorrow

Recentemente, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, vem, por meio de seu Twitter, agradecendo ao BTS pelo incentivo ao uso de máscaras e pelas mensagens de conforto e cura através da música. Em 11 de outubro, horas após o último show online do Map of the Soul ON:E — evento esperado por todo o ARMY como um bálsamo em meio ao caos —, em uma publicação escrita em coreano e marcando o BTS, Adhanom chamou-os de “mensageiros de paz e amor”.

Encerramento do Map of the Soul ON:E
Fonte: Big Hit Entertainment

O impacto positivo do BTS já foi reconhecido pelas principais e mais respeitadas organizações internacionais, além de ser possível ilustrar sua influência na indústria musical com gráficos que demonstram o crescimento orgânico e constante do grupo. No entanto, apesar disso, o BTS e o ARMY ainda são e, provavelmente, sempre serão confrontados, dia após dia, com situações que colocam sua filosofia à prova.

Horas após uma matéria sobre o discurso do Bangtan na 75ª Assembleia Geral da ONU ser publicada pela Reuters, a editora sênior do The Economist — cujo o nome acredito que não valha a pena ser citado, para o objetivo principal deste texto1 — , em seu perfil verificado no Twitter, fez o seguinte comentário: “Please no” (“Por favor não”, em tradução livre). Depois de receber as inevitáveis reações, dos mais diversos tipos, de pessoas que sentiram-se desrespeitadas de alguma forma, um outro post, onde pede desculpas por sua “brincadeira” ter sido mal interpretada, pôs um ponto final em sua participação neste episódio. Todavia, foi o bastante para que seus colegas, admiradores e alguns outros que não entendem o peso destas palavras surgissem em sua defesa. Entre eles, uma personalidade da TV inglesa foi um tanto mais explícita no teor de sua publicação: “Tudo isso sobre uma pequena boy band coreana que é fundamentalmente não importante?”.

Em um estudo sobre a obra A ordem do discurso, de Foucault, Brandão (2015) explica que “um discurso pode ser conceituado (…) em um sistema aberto que tanto registra quanto reproduz e estabelece os valores de determinada sociedade, perpetuando-os”. Portanto, uma frase, principalmente se dita por uma pessoa que representa uma figura de poder perante outra, não pode ser considerada somente uma “brincadeira” ou uma “inofensiva opinião”. Seu objetivo final é a perpetuação de valores de uma sociedade, neste caso, historicamente, racista, sexista e etnocêntrica.

“Já que somos como alienígenas para a indústria musical americana,
não sabemos se há um espaço para nós ou não”.
— Kim Namjoon sobre o Grammy, em entrevista para Reuters
(tradução: Bangtan News Brasil)

No campo da Psicologia, tais situações são classificadas como microagressões. No livro Microaggressions in Everyday Life (Microagressões na vida cotidiana, em tradução livre), de Derald Wing Sue, o termo é conceituado como:

“(…) experiências constantes e contínuas de grupos marginalizados em nossa sociedade; eles atacam a auto-estima dos destinatários, produzem raiva e frustração, esgotam a energia psíquica, reduzem sentimentos de bem-estar subjetivo e dignidade, produzem problemas de saúde física, encurtam a expectativa de vida e negam às populações minoritárias igual acesso e oportunidades na educação, emprego, e cuidados de saúde” (Brondolo et al., 2008; Clark, Anderson, Clark, & Williams, 1999; Franklin, 1999; King, 2005; Noh e Kaspar, 2003; Smedley & Smedley, 2005; Solórzano, Ceja e Yosso, 2000; Sue, Capodilupo, & Holder, 2008; Wei, Ku, Russell, Mallinckrodt, & Liao, 2008; Williams, Neighbours e Jackson, 2003; Yoo & Lee, 2008, apud SUE, 2010, p. 6).

Desde o início da carreira, o BTS já compartilhou muitas de suas angústias causadas pelo trabalho excessivo e o não reconhecimento deste. Segundo Eaglehawk (2020), “ser um ARMY é um dever, assumido de bom grado, de testemunhar a vida de um grupo de idols que está mudando o mundo apenas por existir em lugares que não foram construídos para eles”.

“Eu acho realmente incrível o fato de que as pessoas que gostam e nos apoiam estejam aderindo a causa dessa maneira. (…) Honestamente, não é fácil fazer esse tipo de coisa simplesmente porque você gosta de alguém”.
— Min Yoongi sobre o ARMY, durante a preparação para a 73ª Assembleia Geral da ONU
(tradução: Bangtan Brasil)

Há muitas teorias e interpretações acerca do music video de On, e apesar de não ser uma especialista em análises do Bangtan Universe (BU), tomo a liberdade de concluir o pensamento que engloba este artigo, através de uma analogia entre frames que ilustram a narrativa do MV e a nossa realidade.

Vivemos em uma sociedade baseada em desigualdade, seja de renda, de oportunidades, seja, até mesmo, de amor. Nos últimos anos, a onda do novo conservadorismo, os desastres ambientais e outras tragédias parecem ter, cada vez mais, tomado de maneira bruta a nossa capacidade de autocrítica, tolerância e acolhimento. A depressão é a doença do novo século e ocorre 1 suicídio a cada 40 segundos no mundo. Viver, para a maior parte das pessoas, não é uma tarefa fácil, sem obstáculos.

Frame do MV On, onde Seokjin encontra uma pomba branca morta por uma flecha
Fonte: Big Hit Entertainment

Para a grande maioria do ARMY — e quem faz parte sabe — , o BTS chegou no momento exato. Não refiro-me ao seu debut em 2013, mas ao exato momento em que cada um de nós precisava de um novo fio de esperança para persistir e continuar a viver. Conectados pela arte, rompemos barreiras geográficas, culturais e linguísticas, bem como descobrimos que podemos coexistir em harmonia. Ao compartilhar sua trajetória — erros, acertos, derrotas e vitórias — e ao considerar seu fandom o principal motivo para serem o que são e estarem onde estão, o BTS criou um local de pertencimento, onde cada voz tem a sua devida importância.

Sentindo-nos seguros, amparados e pertencidos, então, passamos a desejar e a agir para que o mundo a nossa volta também sinta-se assim. Nem todos que são fãs do BTS conseguem incorporar esses sentimentos, afinal, não somos telas em branco, e uma mensagem é recebida de diferentes formas por cada receptor. Mas o nosso notório senso de comunidade, talvez em algum dia, consiga transformar a sociedade em que vivemos. Por experiência própria, acredito que já estamos começando.

Frame do MV On, onde a pomba branca renasce e voa em direção ao horizonte.
Fonte: Big Hit Entertainment

Texto também publicado no B-ARMYs Acadêmicas
Revisão:
Helmer Marra e Mariana Mathias

Os nomes relacionados às microagressões não foram explicitados aqui, pois este não é um texto que evidencia a denúncia; seu objetivo principal é abordar o impacto do BTS por meio de sua trajetória, trabalho e arte. No entanto, entendo, como estudante de Jornalismo, meu dever em garantir a credibilidade. Aos que quiserem saber mais sobre os ocorridos, indico o artigo de Bryan Rolli, publicado pela Forbes.

REFERÊNCIAS:

  • 방탄소년단 (BTS). Intro: O!RUL8,2?. Produzida por: Pdogg; arranjada por: Pdogg, escrita por: Pdogg, RM . CD digital. Faixa 1. Big Hit Entertainment, 2013. CD digital. Faixa 1.
  • 방탄소년단 (BTS). IDOL. Produzida por: Pdogg; arranjada por: Pdogg, Supreme Boi; escrita por: Ali Tamposi, Pdogg, “Hitman” Bang, Roman Campolo, Supreme Boi, RM. CD digital. Faixa 15. Big Hit Entertainment, 2018. CD digital. Faixa 15.
  • 방탄소년단 (BTS). Tomorrow. Produzida por: Slow Rabbit, SUGA; arranjada por: Pdogg, Supreme Boi; escrita por: RM, J-hope, SUGA, Slow Rabbit. CD digital. Faixa 6. Big Hit Entertainment, 2014. CD digital. Faixa 6.
  • 방탄소년단 (BTS). Intro: O!RUL8,2? (English Translation). Genius, [s.d.]. Disponível em: <https://genius.com/Genius-english-translations-bts-intro-o-rul82-english-translation-lyrics>. Acesso em: 10/10/2020.
  • 방탄소년단 (BTS). IDOL (English Translation). Genius, [s.d.]. Disponível em: <https://genius.com/Genius-english-translations-bts-idol-english-translation-lyrics>. Acesso em: 10/10/2020.
  • 방탄소년단 (BTS). Tomorrow (English Translation). Genius, [s.d.]. Disponível em: <https://genius.com/Genius-english-translations-bts-tomorrow-english-translation-lyrics>. Acesso em: 10/10/2020.
  • 방탄소년단 (BTS). ‘ON’ Official MV. 2020. (5m54s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=mPVDGOVjRQ0>. Acesso em: 10/10/2020.
  • BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995.
  • BRANDÃO, Ramon Taniguchi Piretti. Resenha: ‘A ordem do discurso’. Revista Interespaço, v. 1, n. 3 p. 392–398, 2015.
  • CAMINHA, Marina. A vida para o consumo: sujeitos como mercadoria. Revista Contracampo, n. 20, p. 205–213, 2009.
  • EAGLEHAWK, Wallea; LAZORE, Courtney. I Am ARMY: It’s time to begin. Austrália: Revolutionaries, 2020.
  • LIMA, Rossano Cabral. Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 30, p. e300214, 2020.
  • SUE, Derald Wing. Microaggressions in everyday life: Race, gender, and sexual orientation. John Wiley & Sons, 2010.

GLOSSÁRIO:

  • Autoetnográfico: estudos que usam a experiência e os sentimentos do autor da pesquisa como ponto de partida para a compreensão de questões mais amplas.

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Brunna Martins

아미. Pesquisadora/Revisora pt-br. Conexões na era digital.